Em defesa do espírito de árvore sagrada, o cedro, guaranis se opõem à construção de 11 prédios em SP
Nossa terra, nossa vida
Em defesa do espírito de árvore sagrada, o cedro, guaranis se opõem à construção de 11 prédios em SP
BRENO CASTRO ALVES
COLABORAÇÃO PARA O UOL, EM SÃO PAULO
Há duas semanas, manifestantes guaranis ocupam um terreno vizinho a aldeias indígenas onde uma construtora pretende erguer 11 torres no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida para famílias com renda de até R$ 7.000.
Os guaranis denunciam o corte de centenas de árvores antes da conclusão do licenciamento ambiental da área, localizada no bairro do Jaraguá, zona norte de São Paulo, além da violação de outros requisitos legais.
Mas mais do que o fato jurídico, pesa para o grupo a questão espiritual: a empresa derrubou exemplares centenários de cedros, árvore considerada sagrada para o grupo. Na cosmologia guarani, o espírito do cedro é pai de todos nós.
A construtora Tenda —dona do terreno a poucos metros da Tekoa Ytu e da Tekoa Pyau, duas das seis aldeias que compõem a Terra Indígena Jaraguá— afirma que cumpriu suas obrigações e conseguiu uma liminar de reintegração de posse, expulsando os manifestantes.
Até a última quinta (13), a ação não havia sido executada. Mas isso pode acontecer a qualquer momento.
Apenas uma rua separa o terreno —já parcialmente desmatado para as obras— das aldeias Tekoa Ytu e a Tekoa Pyau, onde vivem mais de 400 pessoas.
Os moradores acusam a empresa de não cumprir o dispositivo legal que prevê que empreendimentos a até 8 quilômetros de aldeias mitiguem os impactos das obras sobre as comunidades tradicionais.
A área é também zona de amortecimento do Parque Estadual do Jaraguá, o que obriga a construtora a consultar a Fundação Florestal de São Paulo para a construção. Como faz parte do conselho gestor do parque, outra vez a comunidade guarani deveria ser consultada. Não aconteceu.
Isso para falar da lei de vocês, lei de papel. O nosso entendimento funciona pela palavra e pelo espírito, é isso que realmente importa nessa história
Natalício Karai de Souza, 54, guarani
Um memorial, e não um condomínio
Sentado sobre uma árvore cortada, Natalício aponta para o toco de um cedro e diz que o espírito continua neste mundo, perdido, quando a morte é brusca. Afirma que isso provoca desequilíbrio porque o "excesso de espíritos tristes pesa e pode furar", causando o que nós entendemos como desastres naturais ou mudanças climáticas.
Ele afirma que o motivo da ocupação e a primeira exigência dos indígenas era realizar um ritual de passagem para permitir que esses espíritos pudessem seguir em frente, e o buraco começasse a ser fechado por vida nova.
A terra aberta bate vento, bate raio, tudo que faz mal, por isso plantamos 200 mudas e queremos mais
O ritual ocorreu semana passada. Agora, batalham para que o local não vire condomínio, mas memorial.
Natalício é forte, trabalhou como vigilante no mundo dos juruá (não indígenas, em guarani) e hoje caminha para se tornar tcheramoi (literalmente "meu avô", uma figura que funciona como referência espiritual na comunidade).
Ele se preocupa pelo bem-estar dos espíritos das árvores que ficaram de pé, sofrendo por ter perdido companheiros e referências de vida.
O que dizem
Os guaranis
Afirmam que não foram consultados pela construtora. Querem, no local onde foram cortados centenas de cedros, criar o Parque Municipal Yary Ty e o Memorial da Cultura Guarani. E propõem que a Prefeitura de São Paulo encontre uma área já degradada para construir os edifícios, sem que ocorra a derrubada da mata nativa.
A construtora
Diz que respeita os questionamentos da comunidade e que o projeto prevê preservação de 50% da área. Afirma também que teve autorização para retirar 528 árvores com a condição de replantar 549 no local e doar 1.099 mudas para o município.
A lei
É exigência do Estado brasileiro que obras a até 8 quilômetros de aldeias avaliem e mitiguem os impactos de seus empreendimentos. A convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), documento que o Brasil também assina, exige, em casos assim, encontros com as comunidades afetadas, que não ocorreram.
O espírito que é nosso pai
Em 30 de janeiro, Davi Karai Popygua, 32, ocupou o terreno com o primeiro grupo de xondaros (guerreiros). Enquanto três companheiros iniciaram diálogo com os seguranças na portaria, 15 entraram pela trilha da aldeia Tekoa Ytu e caminharam dez minutos até a área desmatada pela construtora.
Imediatamente começaram os rituais de passagem e logo chegaram os tcheramoi.
Quando viu as árvores mortas, Davi se emocionou.
Sonhei com aquilo meses atrás. Eram dois cemitérios, um de cada lado, e o espírito me perguntou: como vamos organizar as covas?
Também disse que, ao fim do terceiro dia de ritual de passagem, uma chuva gigantesca caiu sobre a terra, cheia de raios, e foi ali que Tupã, o trovão, levou embora os espíritos das árvores caídas. Para eles, um sinal de que foram bem-sucedidos.
Agora, Davi sabe como quer organizar as covas. Pretende que elas fiquem como estão, que os tocos dos caules enormes sirvam de memorial e lição.
Semana passada, o vereador Gilberto Natalini (PV) protocolou projeto para criar o Parque Municipal Yary Ty e Memorial de Cultura Guarani no local em disputa.
Diz o projeto: "É mais fácil conservar do que recuperar. A implantação do parque municipal vai assegurar que, no futuro, os Guarani Mbya terão de volta aspectos de sua cultura destruídos e assegurará a recuperação da Mata Atlântica e da fauna exuberante que antes existiam no lugar".
Yary Ty significa floresta de cedro, o que é especialmente relevante porque, afirma Natalício, o espírito do cedro é "nosso pai". É a madeira com a qual fazem seu altar e que trata as águas sagradas do Nhemongaraí, seu ritual cíclico de batismo. Afirmam que naquele terreno foram derrubados cedros centenários de onde colhiam a casca para cerimônias.
É, portanto, a árvore que tomaram como espírito dessa luta.
"E não vem achar que cem mudas de um ano substituem uma árvore de cem anos. Não existe isso, árvore bebê nem tem casca para colher", diz Marcio Wera Miri, 35.
Prefeitura autoriza e desautoriza obra
Entre os guaranis e a construtora Tenda, o impasse desembocou em um imbróglio jurídico que, na última quarta (12), culminou com a federalização da disputa.
Estão envolvidos na questão:
O MPF (Ministério Público Federal)
A DPU (Defensoria Pública da União)
A SVMA (Secretaria do Verde e do Meio Ambiente) da gestão Bruno Covas (PSDB)
Na SVMA, um vaivém de versões confundiu os guaranis, que se dizem enganados pela pasta.
Em novembro do ano passado, a secretaria autorizou a construtora a iniciar o corte das árvores. No início deste mês, apresentou aos indígenas um despacho declarando a suspensão da autorização por tempo indeterminado.
Mas esse documento não foi publicado no Diário Oficial, o que tira a validade do papel.
A prefeitura diz que o despacho não foi publicado pois "na data em que foi elaborado, a SVMA foi convidada pelo MPF para reunião com as partes envolvidas". É a mesma reunião em que o documento foi apresentado aos guaranis.
Pouco depois, o MPF pediu a transferência do caso para a esfera federal, responsável por julgar direitos indígenas. A juíza federal Tatiana Pattaro Pereira aceitou o pedido, efetivamente suspendendo o corte de árvores no terreno - mas não a reintegração de posse.
Na decisão de Tatiana está também publicado o diálogo entre MPF e SVMA em que a secretaria afirma que a construtora Tenda não tem autorização para o corte de árvores.
Judicialização
Mesmo com a federalização do caso, a reintegração de posse expedida pela juíza Maria Cláudia Bedotti está vigente e pode ser executada a qualquer momento.
André Dallagnol, advogado da Comissão Guarani Yvyrupa, afirma que a Justiça não tem feito esforço conciliatório. A juíza ignorou pedido da Polícia Militar, que, baseada em normas internas, exige rodada de diálogo antes da reintegração.
Essa conversa entre PM e comunidade deve acontecer nos próximos dias.
"O cenário de uma reintegração de posse é de violência, os ocupantes são expulsos com o uso da força que for necessária. Por isso, os poderes públicos precisam buscar a mediação. As pautas dos indígenas são legítimas, baseadas na legislação e não são impossíveis, por isso o diálogo prévio e efetivo é o mínimo que se pode esperar por parte do Estado", diz André.
Outro lado
Em nota, a Tenda afirmou que o "empreendimento imobiliário é destinado exclusivamente à moradia popular".
A construtora diz que "respeita os questionamentos da comunidade indígena local e reitera que o projeto prevê preservação de 50% da área".
"O empreendimento irá levar infraestrutura e saneamento à região, além de beneficiar até 2 mil famílias de baixa renda", afirma a nota, que segue:
"A primeira fase do projeto favorece 880 famílias e atende a todos os procedimentos necessários para a legalização do empreendimento nas três esferas do Executivo, incluindo autorização para o manejo arbóreo, que prevê a supressão de 528 árvores, o replantio de outras 549 no local e a doação de 1.099 mudas para o município. A Tenda segue à disposição das autoridades e da sociedade civil para qualquer esclarecimento".
Publicado em 14 de fevereiro de 2020.
Edição: Bruno Aragaki; Reportagem: Breno Castro Alves;
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